A realeza sangue verde da Escócia
Andy Murray não pode reclamar de 2016. Nos primeiros 6 meses do ano, colecionou vitórias em todos os setores: tornou-se pai, o primeiro escocês a conquistar duas vezes Wimbledon e viu o Hibernian ganhar a Copa da Escócia depois de 114 anos. O amor pelo Hibs é hereditário e por pouco Murray não se tornou craque em outro tipo de gramado.
Herança de família
Andy Murray, recém coroado rei de Wimbledon, está acostumado a vencer e quebrar recordes. Com lugar garantido entre os quatro maiores tenistas do mundo, tem 40 títulos de torneios da ATP, venceu duas vezes o torneio mais importante do planeta, ganhou uma medalha de ouro na Olimpíada de Londres e entrou para história como o único britânico a vencer um Grand Slam na Era dos abertos. Junto com o irmão Jamie venceu a Copa Davis, torneio que os britânicos não venciam há 79 anos. Além dos genes dos rebeldes ancestrais, o sangue verde, herdado do avô, quase roubou das quadras o maior campeão britânico.
Robert Roy Erskine tinha duas paixões: o tênis e o futebol. Depois de cumprir o serviço militar – para quem não sabe, os escoceses servem na guarda da rainha usando aquele glorioso chapéu de pele de urso – Roy foi convidado para treinar no júnior do Hibs. “Hibernian era o melhor time da Escócia naquela época”, relembra o ex-zagueiro, hoje com 84 anos.
Nas três temporadas vestindo a camisa verde, ele teve poucas chances no time principal dirigido por Hugh Shaw. Erskine tem orgulho de lembrar que jogou a final do torneio East of Scotland Shield com os “Famosos Cinco“. Segundo ele, o resto do time também era bom. Ele destaca Jim McCracken, Jim Souness e um ponta chamado Crawford. Erskine é humilde ao admitir que não teria lugar naquele time: “Era um grande time e eu não era bom o suficiente”. A curta carreira, iniciada em Easter Road, continuou no Stirling Albion e no Cowdenbeath. Foram 46 partidas´pela Liga Escocesa e o gol de empate na partida com o Hearts pela Copa da Escócia. Um belo gol contra!
Roy Erskine é o avô materno de ninguém menos que Andy Murray. As histórias dos tempos que jogava com grandes craques fizeram o pequeno Andrew se apaixonar não só pelo futebol, mas pelo Hibernian. Um dos grandes prazeres de Roy era levar os netos, Jamie e Andrew, para assistir as partidas dos juvenis do Hibs, nas manhãs de sábado em Leith. Outro programa familiar imperdível era o “Hibs Kids Open Days”, no fim da temporada, quando os pequenos torcedores tinham a chance de conhecer seus ídolos. O jogador favorito de Andy era Keith Wright e uma de suas melhores lembranças é a foto que tirou junto com ele, quando tinha apenas 6 anos. Hoje, os papeis se inverteram e agora Wright é o fã declarado de Murray: “Entre tantas crianças que queriam tirar foto comigo, fui logo escolher um futuro campeão. E, nessa época, eu era a pessoa mais famosa na fotografia!”
Aos 11 anos, Andy passava todo o tempo livre jogando por dois times. Os treinadores do Gairloch United Boys Club diziam que ele era um talento e podia jogar tanto no meio campo quanto no ataque. Dois anos mais tarde, recebeu um convite para treinar na escolinha do Rangers. Convite recusado, é claro. Um problema no joelho, posteriormente diagnosticado como patela bipartida, e o amor crescente pelo tênis puseram fim na sua carreira no futebol. Mas seus dias nos campos deixaram uma incomoda lembrança, a contusão crônica no tornozelo esquerdo, que o obriga a jogar com uma proteção.
Na história de Dunblane nos bons e nos maus momentos
Não foi o tênis quem primeiro colocou Murray nas manchetes dos jornais escoceses. Ele estudava na Dunblane Primary School e, em 1996, a escola foi palco do que até hoje é considerado o maior ataque contra crianças da história do Reino Unido. No dia 13 de março, o ex-chefe dos escoteiros, Thomas Hamilton, a quem a mãe de Andy costumava dar carona, entrou no ginásio da escola e disparou 109 vezes, matando 16 crianças e uma professora. O atirador se suicidou em seguida.
O massacre de Dunblane deixou marcas profundas em Andy Murray. Este ano, quando a tragédia completou 20 anos, ele quebrou o silêncio e falou sobre o assunto: “Esta é talvez uma das razões porque eu nunca penso nisso. É muito desconfortável pensar que ele era uma pessoa que eu conhecia, alguém com quem eu convivia nos escoteiros. Descobrir que ele era um assassino foi uma coisa com a qual eu não consegui lidar. Alguns dos irmãos e irmãs dos meus amigos morreram. Eu só tenho flashes daquele dia. Lembro das músicas que cantamos na classe”. Andy, de 8 anos, e seu irmão Jamie, dois anos mais velho, estavam a caminho do ginásio quando os disparos começaram e só se salvaram porque ficaram escondidos debaixo de uma mesa.
A grama é verde e Murray também
Não foram poucas as chances que Andy Murray teve de virar a casaca. Na infância, enquanto os amigos, torcedores de Celtic ou Rangers, colecionavam títulos, ele via o time alviverde subir e descer de divisão. Nos quatro anos que viveu em Barcelona, assistiu partidas da Champions League no Camp Nou e viu o ainda desconhecido Lionel Messi dar os primeiros passos de sua incrível carreira. Mas, até hoje, nada consegue impressioná-lo mais que ver o Hibernian entrar em campo. Em seu currículo de torcedor só falta assistir um derby Hibs-Hearts em Easter Road: “Eu nunca fui a um derby de Edinburgo, mas ouvi dizer que a atmosfera é incrível. Espero ter a chance de assistir quando me aposentar e voltar para a Escócia.”
Viajando pelo mundo para participar dos torneios da ATP, Murray só consegue acompanhar as partidas do time pela internet, através de um streaming legal, ele insiste em esclarecer. E nenhum esforço é grande demais pelo Hibernian. Em maio passado, para assistir a primeira partida da final da Copa da Liga contra o Rangers, ele acordou às 5 da da manhã, no horário da Califórnia. No dia da final estava em Paris, se preparando para a estreia em Roland Garros, e comemorou o título sozinho, uma vez que o irmão e a mãe o abandonaram para presenciar in loco a histórica vitória do alviverde.
Desde sempre, Andy Murray se sente confortável cercado de verde. Seja num campo de futebol, na tradicional quadra de grama de Wimbledon aparada na altura de 8 mm ou vestindo a camisa do Hibs. Para ele nada disso importa, porque é verde o sangue que corre em suas veias.