Francesco Totti e a cultura pop

Nos últimos 23 anos, Francesco Totti deixou de ser apenas um jogador de futebol para se tornar um ícone da cultura pop. Totti está no cinema, na literatura, na música, nas artes, na publicidade e até no universo da animação e dos quadrinhos. Uma figura reconhecida no mundo todo, o capitão da Roma pode até parar de jogar no fim da temporada em curso, mas certamente continuará presente em nossas vidas.

Totti flertou com o cinema e muitos afirmam que Er Capitano tem um talento nato para a comédia. No filme“L’allenatore nel pallone 2”, que conta as desventuras do treinador Oronzo Canà, interpretado por Lino Banfi, Francesco, junto com outros nomes conhecidos do futebol italiano como Alessandro Del Piero, Luca Toni e Gianluigi Buffon,Marco Amelia, Fabio Galante, Giancarlo Antognoni, Roberto Pruzzo e Ciccio Graziani, fez sua estréia na telona. O filme, lançado 24 anos depois do original, foi um enorme sucesso de bilheteria.

Alguém consegue imaginar Totti como um autor de best sellers? Pois ele é! Em 2003, em parceria com o jornalista Maurizio Costanzo, ele lançou seu primeiro livro “Tutte le barzellette su Totti (raccolte da me)” e vendeu milhões de exemplares. O sucesso foi tanto que outros dois volume dos ‘causos’ do capitão foram publicados. Depois vieram os dois divertidíssimos guias de Roma. Até hoje, Francesco já lançou sete livros.

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Mas a vida de Francesco também merece registro. Doze livros sobre o Capitano foram lançados. Alguns apresentam um elaborado registro da vida do jogador, enquanto outros exploram mais o lado celebridade do capitão romanista. Todos estes livros são leitura obrigatória para o torcedor da Roma.

Na segunda temporada de “I Cesaroni”, Claudio Amêndola, grande amigo de Totti que interpreta o protagonista, convidou o jogador para uma participação mais que especial no seriado. No episódio “Fuori Gioco”, escrito por Francesca Primavera, Giulio e Cesare organizam a partida anual entre Garbatella – San Paolo. Depois de um mal-estar, Giulio, mesmo contrariando ordens médicas, decide participar do jogo quando fica sabendo que alguns jogadores da Roma jogarão a partida. Para desespero da mulher, Lucia. Além de Totti, o episódio conta também com as presenças de Luciano Spalletti, Alberto Aquilani, Marco Cassetti, Gianluca Curci, Daniele De Rossi, Mancini, Christian Panucci, Simone Perrotta e Rodrigo Taddei.

Mas esta não foi a única aparição do Capitano na TV. Totti e a mulher Ilary dublaram o episódio 22º episódio da 17ª temporada dos Simpsons, “Marge and Homer Turn a Couple Play”, que foi ao ar na Itália em novembro de 2006.Francesco emprestou a voz a Buck Mitchell, jogador de baseball e protagonista da história. Assista ao divertido video do making of.

Francesco já foi cantado em verso e prosa e até arriscou uma participação no CD “Mai soli mai” do cantor e compositor Marco Conidi. O CD, que comemorava os 80 anos da Roma, foi encartado no jornal “Il Romanista” e hoje é uma raridade. Totti, De Rossi, Aquilani e Curci recitam a letra da música La Roma che conosco.

Em julho deste ano, Totti arriscou mais uma vez seus dotes vocais, cantando na praça de Pinzolo “Questo piccolo grande amore” de Claudio Baglioni.

A banda romana Giuda homenageou o ídolo na música “Number 10”. Em entrevista ao jornal La Repubblica, os músicos manifestaram o desejo de conhecer o capitão da Roma: “Não sabemos se o capitão escutou a nossa música. De qualquer maneira, seria um prazer conhecê-lo e tirar uma foto com ele”. O encontro foi registrado no documentário “Nel Pallone”, de 2013.

A lista de músicas dedicadas a Francesco é, no mínimo, eclética. Começamos com a belíssima “Anche io sono Francesco”, de Marco Conidi.

Com introdução do mítico Carlo Zampa, “Il Capitano”, de Piero Mirigliano, tem um tecladinho dos mais fuleiros. Mas o que conta é a intenção, não é?

Fabri Fibra, famoso rapper italiano, usou a ligação de Totti com Roma na letra da música “Come Totti”.

Um reggae pra Totti? Ouça “Solo un capitano” da banda Wogiagia.

A música de Bello FiGo caiu no gosto dos italianos. Jogando para a torcida, o cantor que vive em Parma – e se autodenomina ‘o príncipe do SWAG’- escreveu o RAP “Sembro Francesco Totti” para o Capitano.

Em março, o site oficial da Roma lançou uma playlist especial (imagem ao lado) no Spotify para comemorar os 23 anos da estréia do Capitano na Série A. As 23 músicas da playlist, uma para cada ano da carreira de Totti, tem Nirvana, Artic Monkeys, Radiohead, Coldplay, Vasco Rossi, Ligabue, entre outros.

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O caso de amor entre Totti e a revista Topolino é antigo. PaperTotti, o alterego de Francesco nos quadrinhos da Disney, foi criado por Riccardo Secchi e desenhado por Turconi. Ele apareceu pela primeira vez no dia 16 de janeiro de 2008, no número 2721, em “Papertotti e il segreto del cucchiaio”. Voltou um ano depois em “Topolino e la Maxi Mini-Coppa”. Em 2011, PaperTotti apareceu novamente em “Paperino e Topolino in: la finale, finalmente!”. Em comemoração ao 39º aniversário do Capitano, o pato craque ilustrou novamente as páginas da revista, com direito à reprise do famoso selfie no derby. Para os 40 anos de Francesco, além de mais uma historinha, uma deliciosa entrevista, feita por ninguém menos que o Pato Donald.

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Os grafites romanos dedicados a Totti são pontos turísticos na capital italiana. O mais famoso, sem dúvida, é o de Rione Monti, que surgiu na época do scudetto de 2001. Em novembro de 2012, o muro foi vítima de vândalos, mas foi restaurado um mês depois. Em 2014, outro mural, de 18 metros de altura, foi feito na parede na tradicional escola Giovani Pascoli,entre via Sibari e via Apulia, a dois passos da via Vetulonia, onde Totti nasceu e cresceu.

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Uma série criada pelo artista suíço David Diehl, chamada “Football Icon” escolheu 16 ídolos que foram retratados como santos para representar a fé futebolística. Totti, que já tinha sido escolhido na série original, ganhou um outro retrato, em 2017, ano da sua aposentadoria. As duas pinturas são óleo sobre madeira, com detalhes em folha de ouro e uma auréola em ouro 24 quilates.

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O capitão da Roma faz tanto sucesso como garoto propaganda que vende desde Pepsi à minutos de internet. Mais desenvolto que outros craques, Francesco tem um veia cômica que torna irresistíveis as suas participações nos spots da Vodafone e da 10Lotto.

A estreia de Totti nos videogames foi com o Fifa 96. Hoje, 20 anos depois, ele é o único jogador a figurar em todas as edições do jogo desde então.

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Quem imaginou que, depois da aposentadoria, ele iria descansar, se enganou redondamente. Em setembro de 2018, Francesco, em parceria com o jornalista Paolo Condò, lançou a biografia “Un Capitano”. No livro, Totti fala da infância, das conquistas, da família, de Roma e, em especial, da Roma. O lançamento foi, como não podia deixar de ser, no Coliseu!

O livro serviu de base para a minissérie “Speravo de morì prima”, que estreou em março de 2021. O personagem principal é interpretado por Pietro Castellitto, filho do ator e diretor Sergio Castellitto. A série aborda os últimos anos de carreira de Totti, com destaque para o entrevero entre ele e o treinador Luciano Spalletti, interpretado por Gianmarco Tognazzi.

Mas a maior declaração de amor que ele poderia receber é o documentário de Alex Infascelli, romano e romanista, “Mi chiamo Francesco Totti”. O diretor acompanhou Francesco e registou todos os momentos antes e depois da despedida dos campos, no dia dia 28 de maio de 2017. Como se fosse um balanço dos 25 anos em que viveu e respirou futebol, o filme mostra o lado mais humano do campeão, com imagens inéditas da infância e da família.

Léo Gomes e a poesia esquecida da bola

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Pier Paolo Pasolini dizia: “O futebol que expressa mais gols é o futebol mais poético. Também o drible é por si poético (ainda que não se compare com o gol). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por todo espectador) é arrancar do centro do campo, driblar a todos e marcar o gol. Se, dentro dos limites, se pode imaginar uma coisa sublime, é precisamente esta.”

A poesia do futebol, para um menino, começa invariavelmente nas peladas de rua. É ali que ele se destaca, chutando uma pedra, driblando um portão, tentando uma jogada de efeito. E, sem perceber, ele ensaia um soneto, faz uma rima e arrisca um refrão.

Foi assim para Henrique Léo Chirivino Gomes, nascido em 30 de outubro de 1933,  cuja habilidade levou ao juvenil do modesto Sá Viana de Uruguaiana.

Zagueiro que só bate na bola

Léo era raçudo, da longa e notória linhagem de zagueiros gaúchos. Considerado o terror dos ponta direitas, levava tão à sério seu papel de não deixar o adversário avançar na sua porção de campo, que ganhou dois apelidos bastante depreciativos: “Bandido” e “Cuspida”. Para um jovem jogador este tipo de ‘atenção’ da mídia, às vezes pode custar caro. O rapaz era viril, marcava o adversário em cima e entrava duro quando não tinha outro jeito, mas estava longe de ser violento e desleal. Pra cima dele nenhum atacante podia se vangloriar de fazer gol. Era uma verdadeira muralha.

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A história da cuspida é só mais uma daquelas lendas do futebol que ganham corpo e importância cada vez que são contadas. Quem conta um conto… Reza a lenda que ele cuspiu em um atacante para desarmá-lo. Ninguém sabe se é verdade, mas o apelido pegou. “Cuspida” é famoso até hoje em Uruguaiana.

1954, o ano que mudou o futebol gaúcho

Em janeiro de 1954, enquanto São Paulo recebia atores e atrizes hollywoodianos para a comemoração do IV Centenário, alguma coisa acontecia em Porto Alegre. Dirigentes gaúchos se reuniam para aprovar a nova fórmula do campeonato de futebol. Nada mais de chave vermelha contra azul, agora todos os times, inclusive os do interior do estado, poderiam participar. Nascia o Gauchão.

Renner e o primeiro título

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Léo Gomes chegou ao Renner para ficar na reserva de Ivo Andrade, o capitão do time e irmão mais velho de Ênio (que anos mais tarde ficaria famoso como treinador e se sagraria campeão brasileiro por Inter, Grêmio e Coritiba). Gomes não era mais o zagueirão dos tempos do Sá Viana e agora fazia a função de volante.

O técnico Selviro Rodrigues, professor de Educação Física do prestigioso Instituto Porto Alegrense (IPA), foi um dos precursores da preparação atlética para os jogadores de futebol, o que explica o vigor e a velocidade do time do Renner. Mas, acima de tudo, o professor Selviro conseguiu transformar o time em um grupo de amigos, cuja camaradagem ultrapassou o campo de jogo e seguiu por toda vida.

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Durante o campeonato, o time se concentrava no IPA sob o olhar rígido do treinador. Os rapazes eram unidos e sempre que podiam organizavam cantorias, jogos de cartas e campeonatos de bilhar. Nas poucas folgas, o grupo ia ao cinema. Com exceção de Léo, que preferia atravessar a rua e passar o tempo livre fazendo a corte à Flavia Terezinha, namorada com quem mais tarde viria a casar.

No tempo em que as vitórias valiam 2 pontos, o Renner foi campeão citadino invicto, com 15 vitórias e 3 empates. Foi também o ataque mais positivo marcando 59 e sofrendo apenas 16 gols. Foi o bicho papão de 1954, vencendo também o campeonato gaúcho e acabando com a longa hegemonia de Grêmio e Internacional.

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Grêmio, Cruzeiro e o fim prematuro da carreira

Em 1957, Léo se transferiu para o Grêmio, onde jogou até 1962. O Grêmio desse período colecionou títulos, aumentando ainda mais a lista de conquistas de Gomes como jogador. No Grêmio de Oswaldo “Foguinho” Rolla (craque dos anos 30 time que se tornou treinador), foi companheiro de equipe de Aírton Pavilhão, Gessy e Juarez, o Tanque, primeiro negro a jogar pela equipe gaúcha.  Já neste período começou a sofrer com contusões.

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Passou do Grêmio para o Cruzeiro de Porto Alegre, que na época era a terceira força do Estado. Os clássicos Gre-Cruz ou Inter-Cruz agitavam as coisas na cidade. Nenhum time tinha vida mole ao enfrentar o Leão da Montanha em seu estádio. Léo não estava em sua melhor forma e, apesar de ter apenas 30 anos, já era considerado velho para o futebol. Na época as carreiras duravam pouco e os salários eram cada vez menos atraentes, ainda mais para um homem casado e com filhos pequenos.

O ponto final foi a ruptura do menisco. Naquele tempo, a solução para o problema era extirpar toda a cartilagem do joelho, o que tornava quase impossível voltar a jogar. Além de causar dores insuportáveis.

A vida nos campos acabou, mas Léo nunca esteve distante do futebol. Organizou times infantis e foi um dos fundadores do departamento de ex-atletas do Grêmio. Por diversão, os ‘Masters’ se apresentavam pelo interior jogando contra times locais.  Em uma dessas viagens, formou uma inusitada dupla de zaga com o filho: Cuspida e Cuspidinha. Foi a primeira de muitas parcerias entre os dois.

A vida depois do futebol

Começou a vida de ‘homem comum’. Os títulos e os feitos heroicos dos gramados tinham pouca importância, mas a responsabilidade e a disciplina serviram perfeitamente para a nova carreira que escolheu. Começou a trabalhar na Caixa Econômica Federal e logo assumiu o cargo de chefe de seção.  Progrediu rapidamente ao posto de gerente, transferindo-se para Giruá, pequena cidade muito longe de Porto Alegre. Nenhum desafio era grande demais para Léo e seu sucesso na agência não passou despercebido. Foi novamente promovido e assumiu mesmo cargo em uma agência maior, em Soledade.

Descobriu os pequenos prazeres da vida como ensinar o filho a nadar nas águas do rio Guaíba. Na vida com Flávia, seu único e grande amor, e os filhos Luiz Henrique e Márcia, nunca faltava música, com os saraus semanais. O guri, por sinal, queria ser jogador e chegou a treinar na escolinha do Grêmio. Mas Léo viu logo que aquela vida não era pra ele. Para afastá-lo da bola, arrumou-lhe um professor de violão. A contrariedade do menino durou alguns minutos e na aula seguinte ele já estava completamente envolvido. A velha visão de jogo, que previa jogadas e passes, serviu também para a vida fora do campo. Ao mudar a trajetória de Hique, Léo marcou seu maior gol. Do resto o destino se encarregou.

Herdeiros

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Hique Gomez, diretor, multi-instrumentista, compositor e ator, passou a infância vendo o pai jogar e sonhando com um futuro na zaga do Grêmio. No coração de Hique, as lembranças de música e futebol se misturam. Dos saraus em casa com La Bamba cantada a plenos pulmões, da salada de influências que misturava Alvarenga e Ranchinho e Stevie Wonder, Vicente Celestino e Martinho da Vila. Léo encorajava as aventuras musicais do filho e nunca mediu esforços para incentivar o talento do garoto, chegando a vender um terreno para comprar um piano. Essas e muitas outras histórias fazem parte da autobiografia “Hique Gomez, para Além da Sbórnia“, lançada pela editora Besouro Box, em 2019.

Um talento nato, aos 15 anos, Hique já tocava em bandas de baile. Em 1984, começou uma das mais respeitadas parcerias da música brasileira com Nico Nicolaiewsky, o Tangos & Tragédias. Depois da morte de Nico, em 2014, deu continuidade ao projeto paralelo Tãn Tãngo, iniciado em 2011, e atualmente viaja o Brasil com o show “A Sbørnia Køntr’Atracka.

Infelizmente, Léo não viu nascer o Tangos & Tragédias, mas ficaria encantado com o violinista Kraunus Sang, o Maestro Plestkaya e toda a troupe, que podem ser vistos na animação “Até que a Sbørnia nos separe” e na websérie Sbørnia em Revista

“Zagueiro do Grêmio” foi composta por Hique para homenagear não só o pai, mas todos os corajosos que escolhem defender essa zona do campo.

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Clara Averbuck é escritora, com 20 anos de carreira, 9 livros lançados, no Brasil e no exterior, alguns deles adaptados para cinema e teatro. Além disso, é comunicadora, colunista, professora de escrita criativa, pós-graduanda em Direitos das Mulheres e pole dancer. Entende de tudo, mas pra futebol não dá muita bola. O que não a impediu de escrever, em 2006, uma crônica para a Folha de São Paulo, contando do orgulho de ser neta do “Cuspida”.

Durante a pandemia, Clara resolveu tirar da gaveta antigos projetos e criou o “Averbuck is on the table“, no APOIA-se; os podcast “Não fui eu, foi meu eu lírico“, sobre literatura, gênero e subjetividade do alter ego na escrita, e “Nu Frontal” em parceria com a escritora e ilustradora Bruna Maia; uma coleção de camisetas e outras peças em colaboração com a loja “El Cabriton” e o selo independente “O Cachorrinho Riu”, por onde serão relançados os livros dela que estão fora de catálogo. Parece pouco? Pode apostar que vem muito mais por aí!

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Rigoroso, justo e parceiro, é assim que Hique Gomez define seu pai. Gremista, o futebol de hoje não o encanta mais. Para quem aprendeu a andar sobre o prado verde do velho Olímpico e viu um esporte jogado pelo grupo, o futebol individualista das arenas moderníssimas e dos craques milionários, teleguiados por ambiciosos empresários, parece coisa de outro mundo: “Fui num encontro do Renner e falei isso… todos velhinhos, alguns doentes, e eu falei pra eles, que aprendi a tratar os meus amigos como meu pai tratava os amigos dele. E, no caso, foi um exemplo muito positivo porque eram vencedores”.

Léo Gomes morreu em 1983, aos 50 anos, vítima de câncer no pulmão. Viveu duas existências, uma dentro e outra fora de campo e em ambas foi vencedor. Da sua inspirada prosa e poesia nasceram um músico e uma escritora. Nada mal para o guri que se divertia jogando bola na rua.

55 Segundos no topo do mundo

“Deixa que te conte histórias dos meses do ano, de fantasmas e corações partidos, de terrores e desejo. Deixa que te conte de bebedeiras até tarde da noite e de telefonemas sem resposta, de boas ações e dias ruins, de término e reconciliação, de homens mortos que caminham e pais perdidos, de moças francesas em Miami, de lobos confiáveis e de como falar com as meninas. Existem histórias dentro das histórias, sussurradas no ouvido no silêncio da noite, gritadas acima do rugido do dia, e representadas entre amantes e inimigos, estranhos e amigos. Mas todas, todas são coisas frágeis inventadas usando 26 letras arranjadas e rearranjadas uma vez e outra para formar contos e fantasias que, se você deixar, irão deslumbrar os seus sentidos, assombrar a sua imaginação e movê-lo para as profundezas da sua alma.” (Neil Gaiman)

 

A fotografia tem o poder de parar o tempo. Algumas imagens, mais que outras, conseguem captar um momento e eternizá-lo. É o caso da capa do Jornal da Tarde do dia 6 de Julho que, para mim, é a primeira página mais marcante da história do jornalismo brasileiro. Todo o sentimento de um povo capturado pelas lentes de Reginaldo Manente. Existe outra foto, desta vez um salto de alegria, um homem que paira no ar. Dois momentos distintos, de tristeza e de alegria, as duas pontas do espectro das emoções humanas, que mereceriam estar na ‘cápsula do tempo’, na mensagem na garrafa que Carl Sagan enviou para o espaço a bordo da Voyager junto com saudações em 55 línguas, os sons da natureza, Bach, Beethoven, Mozart e “Johnny B. Goode” para explicar para outras vidas de outros mundos quem somos, de que somos feitos e toda a síntese do que é ‘ser humano’.

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A história da foto da primeira página todos nós sabemos. Na verdade, evitei ler ou assistir o vídeo que mostra o encontro entre o menino da foto e Paolo Rossi. Agradeço e passo, porque não preciso que ninguém me explique o que senti naquele dia.  Da outra foto, a do homem suspenso no ar, não sabia nada. Talvez, por isso, um livro sobre ela me pareceu tão fascinante. 

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“55 Secondi” conta a história daquela foto. A história de coisas frágeis, de sonhos destruídos e corações partidos. A história da expectativa de um momento único na vida, do fim da inocência, da primeira e mais dolorosa troca de pele que significa crescer. Eu poderia resumir tudo dizendo que é a história de como dois meninos romanos – e toda uma cidade – viveram a partida mais importante de suas vidas, mas esta seria uma visão simplista do que este livro representa. É a história de um 30 de Maio que definiu os 30 seguintes. Porque o 30 de maio de 1984 não é apenas o dia em que a Roma disputou sua primeira final de Copa dos Campeões, numa época em que só os campeões participavam do torneio. O 30 de maio de 1984 não é uma partida, não é a partida, mas a chegada. E a grande beleza do livro não está em contar a partida em si, mas a espera, a maneira como ela foi vivida, vista e sentida por esses dois meninos, um de 11 e outro de 15 anos. Este livro é um acerto de contas com o fim da infância, é uma dívida paga com si mesmo e com todos os outros que não são capazes de usar as palavras para descrever de maneira tão simples e comovente o que aquela imagem representa. É um livro feito para os filhos. Um legado. 

Tonino Cagnucci e Paolo Castellani são os dois meninos narradores desta história. Entre a filosofia e o futebol, Cagnucci escolheu fazer do futebol sua poesia. Castellani enveredou pelo caminho da arte. É um estudioso, um colecionador e sua Monalisa é a camisa que Agostino Di Bartolmei usou naquele 30 de maio. Agostino Di Bartolomei é o homem que voa na foto. É o homem que escolheu um outro 30 de Maio, dez anos depois, para deixar o mundo. Este livro é, de certa forma, necessário para explicar o outro 30 de maio e para render mais uma homenagem a Di Bartolomei. 

Não importa se você gosta ou não de futebol, este é um livro que deve ser lido sem nenhum preconceito, porque mais que um livro sobre futebol, ele fala da vida. Esta viagem pela memoryland é um passeio de mãos dadas com esses dois meninos por uma Roma desconhecida, toda pintada de vermelho e amarelo, ruidosa e esperançosa, que respirava um perfume de esperança e sonhava toda o mesmo sonho. É também um retrato de uma geração que leu demais, ouviu muita música, viu e sentiu demais e agora tenta explicar para aqueles que têm tudo em um clique, como era viver tendo tanto sem ter quase nada. Toda a emoção de ouvir uma partida de futebol pelo rádio, usar mais a imaginação que os outros sentidos. A última geração analógica da história, que assistiu Blade Runner e saiu do cinema imaginando que um scanner de fotos era uma coisa quase tão impossível quanto o teletransportador. A geração que viveu cada pequena alegria sabendo, no fundo, que de pequenas elas não tinham nada. “Eu vi coisas que vocês não acreditariam”, vocês da geração dos iPhones, das SmartTvs, da internet por fibra, das redes sociais, não fazem idéia. E como era maravilhoso imaginar, sonhar, ansiar por alguma coisa. Não existe vida sem música e cada capítulo é permeado pela trilha sonora de 1983/84 – fazendo uma exceção ao The Clash, porque eles são eternos e sempre pertinentes – The Cure, Lotus Eaters, The Police, U2, The Clash, The Smiths, Wham e Antonello Venditti. A música que descrevia o mundo, a vida e o amor que nós, humanos, iríamos um dia sentir. 

É impossível passar pela vida sem perder algumas coisas, sem algumas cicatrizes. É preciso acertas as contas com o passado para poder seguir em frente, mesmo que, às vezes, pareça difícil encontrar a força para fazê-lo. A maneira que Cagnucci e Castellani encontraram para recontar o melhor, o maior, o mais incrível, o mais marcante e o mais terrível momento de sua infância é uma conversa que atravessa os nove meses da campanha romanista na Copa de Campeões, sem deixar de render homenagem ao adversário que destruir o sonho. O livro começa e termina com uma respeitosa reverência ao Liverpool, contando a da final da Copa de Campeões de 1977, entre Liverpool e Borussia Mönchengladbach , disputada em Roma, e fecha o círculo com “You’ll Never Walk Alone”, a música que o Liverpool tomou para si e paira acima dos portões de Anfield. Neste livro, em nenhum momento, mas especialmente naquela primavera inesquecível de 1984, caminhamos sozinhos. A primavera antes do inverno do descontentamento, antes do adeus do Divino Falcão, antes da tempestade que se avizinha e levará o Barão e o Capitano para Milão, como sonhava Próspero. “Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”. E sonhos de criança, mesmo delicados, são difíceis de matar. Nós devemos falar sobre as coisas que nos fazem mal, porque 30 anos é muito tempo para prender a respiração. É preciso voltar a respirar, abrir as janelas, as gavetas, soltar os fantasmas, renovar os sonhos, confiar no coração e começar a escrever uma nova história.  

O futebol é uma metáfora da vida, das batalhas diárias, do amor perdido e reconquistado, de pequenas vitórias e grandes derrotas. Não. O futebol é a vida. É perder algumas e ganhar outras. É a próxima partida. É a expectativa de alguma coisa que nos faz sentir grandes, mesmo que só por 90 minutos. É a memória que nunca se apaga. O futebol é amor. Por um time, pelas suas cores e pela sua história feita de lágrimas de alegria e tristeza. Uma história feita por homens, que nunca serão comuns na lembrança de uma criança. O futebol é uma herança que passa de geração para geração e está impressa no DNA. O futebol são aqueles 55 segundos suspensos no tempo por 30 anos e para sempre. 55 segundos em que tudo parecia possível. 55 segundos em que a Roma era de novo o centro do Universo, no topo do mundo, a maior da Europa. Quem não entende isso, nunca entenderá. 

*Publicado originalmente no Portale Eh Già