Ditadura Nunca Mais!

“Sendo vários e difíceis os problemas que a História contemporânea do Brasil nos propõe, há alguns de ordem cronológica e outros de ordem semântica que a muitos confundem e deixam em estado de total perplexidade, já que admitem soluções distintas e até mesmo antagônicas conforme o enfoque político de cada um.

Exemplo: será 31 de março ou 1º de abril a data que a História fixará quando registrar a alteração patológica do regime constitucional então vigente? Outro exemplo: será como revolução ou como golpe que ela classificará o movimento ianque-udeno-militarista que depôs o governo do Presidente João Goulart e tentou, com isso, impedir a marcha inexorável do povo brasileiro rumo à sua completa independência?

Para os historiadores palacianos, esses áulicos cobertos de mofo que as traças devoram antes do que a seus próprios livros, não há dúvida alguma: a data é a de 31 de março e o movimento foi mesmo uma revolução – uma revolução democrática e cristã tendente a resguardar interesses adquiridos e virgindades vestálicas da sanha assassina dos bárbaros vermelhos. Para eles, a marcha que se iniciou em Minas, lideradas pela vaca e pelos touros fardados (como a si próprios se classificam) tem importância comparável à das batalhas de Waterloo, do Marne e de El-Alamein, conquanto não se tenha disparado um só tiro.

Para os outros, os antipalacianos, os que analisam a História à luz de dados reais e com a dose de ironia que néscios, julgando escrevê-la, frequentemente lhes proporcionam, a data será a de 1º de abril – marco de vitória numa campanha militar que não houve e que foi decidida antes, nos conchavos de gabinete, nos telefonemas sigilosos, nas notas diplomáticas, nas “abnegações patrióticas” e nas lágrimas mil dos bravos cabos de guerra no Brasil. E o movimento será chamado de golpe de Estado, quartelada, putsch e quantos outros sinônimos haja para situá-lo com objetividade, relatando sua origem espúria, pois é filho de falsos pretextos e está a serviço de interesses contrários aos de nosso povo, e descrevendo o cortejo grotesco de infâmias que o caracterizou.

Este pequeno livro de Mário Lago, conhecida figura do rádio, do teatro, do cinema e da música popular brasileira (é o autor da letra de Amélia, o samba antológico) constitui subsídio importante para esses historiadores de verdade: relata-nos aqui, numa linguagem pitoresca e cheia de calor humano, a desagradável experiência por que passou ao ser encarcerado, durante 58 dias, sem culpa formada, sem ter cometido qualquer crime. Suspeitava-se, apenas, que ele fosse um nacionalista (ele de fato o é, com toda a convicção) e que não estivesse morrendo de amores pelos golpistas (pouquíssimas pessoas estão), de 1º de abril.

Mário Lago curtiu 58 dias de desconforto e de humilhações nas sinistras “hospedarias” da DOPS, em companhia de centenas de pessoas, como ele, que haviam cometido – ou podiam cometer – o crime de se desejarem livres. Este seu livro é a crônica viva dessa provação que qualquer brasileiro, nos dias que correm, pode experimentar de um momento para outro, ao sabor de um capricho, de um recalque ou da delação que os eternos covardes façam aos momentaneamente poderosos.

Mas os cárceres, se imobilizam os corpos, não prendem as ideias e não matam a liberdade, por mais que a torturem. Mário Lago nos mostra em seu livro como é que se pode enfrentar, com un certain sourire, a grossura, a violência e a estupidez. Suas histórias servirão, mesmo à História.”

(Orelha do livro “1º de Abril”, de Mário Lago, escrita por Ênio Silveira em 1964)

Diário Carioca, 1º de abril de 1964

Deixe um comentário