As aventuras do boleiro Che Guevara pela América

Ernesto Guevara de la Serna era um apaixonado torcedor do Rosário Central. Aos 6 anos sabia de cor a escalação do time. Seu primeiro ídolo foi Enrique “Chueco” García, vendido em 1936 pela astronômica cifra de 39 mil pesos ao Racing. Apesar de Alfredo Di Stéfano nunca ter jogado pelo Rosario, Ernesto tinha por ele uma devoção quase religiosa. Para os amigos que perguntavam porquê não torcia por Boca ou River, respondia “Sou rosarino. Sou canalla“.

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Apesar da asma crônica, que o incomodou por toda vida, Che era um atleta. “Só vou parar de praticar esportes quando morrer”, dizia. Começou com natação e corrida. Durante a adolescência se dedicou a vários esportes como rugby, basquete, tênis, ciclismo, montanhismo, golfe, boxe e ping pong. Praticava esgrima e ginástica. Incentivado pelo tio, Jorge de la Serna, aventurou-se no paraquedismo.

Em Cuba descobriu o basebol e foi o grande incentivador do xadrez, organizando torneios e participando de partidas coletivas com Victor Korchnoi, Mikhail Tal, Larry Evans, Miguel Najdorf e o grande mestre cubano Rogelio Ortega. “O xadrez é um passatempo, mas é também um educador do raciocínio, e os países que têm grandes equipes de enxadristas marcham também à frente do mundo em outras esferas mais importantes”.Mas, acima de tudo, amava o futebol.

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Dos companheiros de rugby ganhou o apelido de Fuser, abreviação de “furioso Serna”. Alto e de porte atlético, quando jogava na linha sempre marcava o jogador mais habilidoso do time adversário. Porém, ele preferia o gol, porque exigia menos fisicamente e permitia que usasse o inalador sempre que necessário. Conheceu Alberto Granado, a quem chamava carinhosamente de Mial (“meu Alberto”), seis anos mais velho e tão apaixonado quanto ele por esportes. Granado logo se tornou uma espécie de técnico da frenética atividade esportiva de Guevara.

Em 1952, os dois partiram para uma aventura pelas estradas latino americanas na motocicleta Norton 500, batizada de La Poderosa. O destino, a América do Norte, nunca foi alcançado, mas suas andanças renderam um diário, muitas histórias e, mais tarde, um filme.

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Reforços de peso

A moto quebrou logo no começo da viagem e os rapazes tiveram que seguir pegando carona em caminhões. No Chile, próximo a Punta Arenas, os viajantes encontraram um grupo que jogava futebol. Alberto tirou da mochila um par de tênis e colocou em prática suas habilidades futebolísticas. Resultado: os dois foram contratados por um modesto salário para jogar uma partida no domingo seguinte. Com direito a comida, hospedagem e transporte até a cidade de Iquique. A vitória foi comemorada com um churrasco preparado por Granado.

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No Peru, nas ruínas de Machu Picchu, mais uma pelada. A habilidade da dupla rendeu a simpatia do dono da bola, que era encarregado do hotel, o que garantiu hospedagem por alguns dias. O Sr. Soto adorava esportes e Ernesto teve boas conversas com ele sobre o assunto.

Depois de uma viagem de barco, ainda no Peru, os companheiros chegaram a Ucayale, na Amazônia peruana, onde fizeram uma parada em San Pablo, colônia de leprosos. Ali ficaram alguns dias trabalhando como voluntários. O leprosário tinha uma área reservada para os doentes mais graves, que ficava do outro lado do rio. Ernesto decidiu atravessar a nado. Nadou 40 metros mas desistiu, diferentemente do que aparece em “Diários de Motocicleta”, filme de Walter Salles.

Alberto Granado, pouco antes de morrer, contou que Ernesto era muito cabeça dura e quando colocava uma coisa na cabeça ninguém conseguia dissuadi-lo. Para provar a si mesmo que podia vencer mais este obstáculo, ele fez a travessia antes de seguir viagem.

No dia do seu 24º aniversário, os pacientes da colônia organizaram uma partida de futebol em sua homenagem. Guevara pôde mostrar toda sua habilidade como goleiro pegando um pênalti, enquanto Alberto jogou no ataque.

O professor chegou

No sul da Colômbia, na cidade de Letícia, foram contratados para treinar o time local, o Independiente Sporting. Por 15 dias, Ernesto e Alberto ensinaram técnica e tática e montaram o time usando como modelo o Grande Torino, campeão de tudo na Itália até a tragédia de Superga em 1949. Na primeira partida perderam por 2-0. O time era tão escasso que os dois decidiram jogar, com Guevara no gol e Granado na defesa.

Para surpresa geral a equipe chegou à final, perdendo nos pênaltis. Em uma carta para a mãe, Ernesto escreveu: “Alberto estava inspirado e fez lembrar, de certo modo, Adolfo Pedernera (ídolo do River Plate nos anos 1940) e seus passes milimétricos, ganhou o apelido de “Pedernerita e eu defendi um pênalti que vai entrar para a história de Letícia”. Com o dinheiro compraram as passagens de avião para Bogotá.

Na cola de Di Stéfano

Em julho de 1952, o Real Madrid realizava uma excursão pela América do Sul (venceu a primeira edição da “Pequena Taça do Mundo”, torneio internacional realizado na Venezuela). Em sua passagem pela Colômbia, o Real queria a revanche da recente derrota imposta pelo Millionários na ocasião das comemorações das Bodas de Prata do time espanhol.

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O “Balé azul” dos argentinos Alfredo Di Stéfano, Adolfo Pedernera e Néstor Raúl Rossi massacrou os donos da casa com um rotundo 4-2 em pleno estadio Chamartín sagrando-se campeão do torneio. Em Bogotá, o time merengue jogou duas vezes no estádio El Campín. A primeira partida, no dia 6 de julho, pelo troféu Copa Ciudad de Bogotá, foi vencida pelos donos da casa por 2-1 , gols de Pedernera e Di Stéfano. Três dias depois, uma nova partida, desta vez valendo o Trofeo de la Cancillería de España, vencida pelo Millonarios por 2-0, com dobradinha de Antonio Báez.

O encontro Che e Di Stéfano: aconteceu ou não?

Existem duas versões sobre o encontro de Guevara e Granado com Di Stéfano. A primeira diz que os dois rapazes foram até a concentração do time colombiano e conversaram com o jogador que, encantado com as histórias que eles contaram, presenteou os conterrâneos com ingressos para a partida do dia seguinte. A segunda versão diz que Ernesto e Alberto perseguiram Alfredo até encontrá-lo almoçando em um badalado restaurante do centro da cidade. A “flecha loira” deu duas entradas de presente para os fãs.

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O tão falado encontro nunca aconteceu. Em seu diário, Ernesto escreve: “Amanhã verei Miillonarios e Real da mais popular das arquibancadas“. Os ingressos foram comprados com o dinheiro que ganharam em Letícia. Guevara registrava em textos e fotos todos os acontecimentos marcantes, hábito que persistiu por toda vida, e conhecer Di Stéfano e assistir ao vivo uma partida tão importante certamente não passaria em branco em seu diário de viagem.

Em sua última entrevista, Granado conta que no fim da partida os dois discutiram por horas sobre quem era melhor, Di Stéfano ou Pedernera. Nenhuma menção sobre o encontro com o craque argentino foi feita.

Na Venezuela, Alberto e Ernesto se separam. Granado resolve ficar em Caracas e Guevara voltou para Buenos Aires para terminar o curso de Medicina. Di Stéfano mudou para a Espanha e foi jogar pelo Real Madrid. Depois daquele julho de 1952, cada um deles, à sua maneira, entrou para a história.

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